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Cientificamente, é inquestionável que a Amazônia caminha para deixar de ser uma floresta tropical.
O “pulmão do planeta,” que armazena cerca de 200 bilhões de toneladas de carbono, agora emite mais carbono do que capta, acelerando as mudanças climáticas que causam mais danos à floresta.
O misterioso chão e copas da floresta que abriga um décimo de todas a formas de vida conhecidas em uma área com o dobro do tamanho da Índia estão sendo silenciados por incêndios florestais e o desmatamento.
O antigo lar de mais de 400 culturas indígenas está vendo as terras de seus povos serem degradadas, roubadas e convertidas para mineração, represas e agricultura.
O primeiro dos três dias dedicado a examinar o estado crítico do Bioma Amazônia durante o GLF Amazônia: O Ponto de Inflexão, uma conferência digital organizada pelo Fórum Global de Paisagens, ouviu um coro de vozes – líderes indígenas, cientistas, políticos, economistas, líderes de organizações, jovens – compartilhando as pressões que estão testemunhando e como podem ser abordadas.
O objetivo, como indica o subtítulo da conferência “Soluções de Dentro para Fora,” deve ser integrar essas realidades em uma estratégia mais forte do que os desafios que vêm de todas as direções.
“Estamos no ponto de inflexão na Amazônia,” disse Luciana Gatti, pesquisadora sênior em mudanças climáticas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). “Isso é reversível.”
No contexto da ecologia, um “ponto de inflexão” é uma junção em um ecossistema ou ciclo natural que, uma vez cruzado, não pode ser revertido. À medida que as geleiras da Antártida se quebram e derretem cada vez mais, os níveis do mar estão subindo a um ponto que pode causar o colapso total da Antártida Ocidental. À medida que o derretimento glacial e as chuvas aumentam com o aquecimento global, a Corrente do Golfo e outras correntes reguladoras do clima são afetadas. À medida que o permafrost ártico derrete, gases de efeito estuda são liberados na atmosfera, impulsionando esses processos.
Para a Amazônia, à medida que essas mudanças no clima global se juntam cada vez mais ao aumento das temperaturas, instabilidade sazonal, incêndios florestais e o desmatamento, o bioma luta para produzir sua própria chuva e mostra sinais de dieback – secando e transformando-se em um ecossistema semelhante a um ecossistema de pastagem. Este é ponto de inflexão da Amazônia e seus estágios iniciais estão em andamento.
“Estamos com mais problemas do que pensamos porque esses pontos de inflexão estão inter-relacionados – eles não são independentes,” disse Robert Nasi, diretor geral do Centro de Pesquisa Florestal Internacional (CIFOR) e diretor administrativo do CIFOR-ICRAF, na abertura do evento.“Essas coisas são muito perigosas porque podem criar efeitos em cascata que afetarão toda a base da biosfera e dos sistemas de sobrevivência da vida.”
“Eu quero que as pessoas de fora nos ouçam e saibam que estamos lutando por nossas vidas – não apenas nossa vida, mas a da humanidade,” disse Nemonte Nenquimo, líder do povo Waorani da Amazônia equatoriana.“Nós, indígenas, temos lutado por muito tempo para manter esse equilíbrio [com a natureza] nas mudanças climáticas.”
O ponto de inflexão da Amazônia começou a ser estudado com seriedade em 1992, quando o cientista brasileiro Carlos Nobre e o cientista americano Thomas Lovejoy, que farão palestras no evento do GLF, lançaram um projeto denominado “Experimento em larga escala da biosfera e atmosfera na Amazônia” para examinar intensivamente a dinâmica atmosfera-biosfera-hidrosfera do bioma. A conclusão deles, anos depois, foi que a Amazônia alcançaria seu ponto de inflexão e secaria quando 40% de sua área fosse desmatada e a mudança climática continuasse em um cenário de negócios como de costume.
No entanto, em 2018, os cientistas reduziram essa estimativa inicial drasticamente para 20 a 25%, em parte devido ao aumento dos incêndios, que estão agora triangulados na equação do ponto de inflexão com o desmatamento e as mudanças climáticas.
Atualmente, mais de 17% da Amazônia foi desmatada e, baseada nas taxas atuais, chegará a 27% até 2030 – por isso a emergência de descobrir como interromper a trajetória desse ecossistema crítico.
Em julho deste ano, Gatti liderou a autoria de um estudo que estourou nas manchetes em todo o mundo com a descoberta de que partes da Amazônia agora emitem mais carbono do que capturam a cada ano.
A parte oriental da Amazônia, cerca de 27% desmatada, emite 10 vezes mais carbono do que a parte ocidental, apenas cerca de 11% desmatada. O sul da Amazônia agora é uma fonte líquida de carbono. A coleta de dados que contribuiu para o estudo terminou em 2018, então as taxas de emissões hoje ainda são desconhecidas, e provavelmente mais altas.
Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, extrapolou os diferentes padrões de incêndio na Amazônia com base em um mapa da iniciativa MapBiomas que mostra as áreas da Amazônia queimadas pelo menos uma vez nos últimos 36 anos, somando um total de 16.4% do bioma. As regiões do sul da Amazônia foram as mais queimadas, com o sudeste se tornando especialmente fragmentado devido ao fogo – como se refletiu nas emissões particularmente altas da biomassa queimada no sul, descritas no estudo de Gatti.
“Esses incêndios são muito perigosos porque as mudanças [no ecossistema] geralmente acontecem lentamente ao longo de várias décadas, mas se o fogo entrar na floresta, essas mudanças são mais abruptas,” disse Paulo Brando, professor assistente do Departamento de Ciência do Sistema Terrestre da Universidade de Califórnia-Irvine. “Não sabemos a quantidade de carbono que estamos perdendo – e não estamos perdendo em toda a região amazônica – mas com o fogo a quantidade será maior.”
“Durante os últimos 50 anos, a região amazônica perdeu 17% de sua floresta,” disse ela. “No ano passado, foi cerca de 1.5%. É demais, e estamos prestes a entrar em colapso, muito rápido. Precisamos de ações urgentes. Precisamos de medidas gerais para acabar com o desmatamento e controlar o desmatamento durante as estações secas e também para encontrar outras maneiras de manejar a agricultura e restabelecer o ecossistema.”
Embora a Amazônia seja frequentemente considerada uma expressão da natureza em sua forma mais selvagem, as estatísticas contam uma história diferente. Veja, por exemplo, os números referentes às florestas brasileiras, apresentados por Alison Castilho, biólogo do Observatório do Manejo Florestal Comunitário e Familiar: dos 311 milhões de hectares, quase todos na Amazônia, 73% são manejados coletivamente de alguma forma, seja através de operações estatais, unidades federais de conservação ou território indígena, disse ele.
Isso é ilustrado por iniciativas como a RedParques, que se apresentou no evento e é uma rede de países da América Latina e do Caribe que colaboram para melhor manejar suas áreas protegidas e conservadas, com o apoio de assessoria técnica da Organização para Agricultura e Alimentação da ON.
A questão é então levada: como a Amazônia pode ser manejada de maneiras que preservem sua integridade ecológica?
As partes da Amazônia com manejo mais sustentável são aquelas mantidas por povos indígenas e comunidades locais, que dependem dos recursos da floresta para sua sobrevivência. Os direitos desses grupos serão discutidos em detalhes no segundo e terceiro dias do evento, mas os métodos de como eles podem se adaptar às mudanças nas paisagens da Amazônia foram destacados ao longo do primeiro dia.
Em resposta aos incêndios, Caroline Nobrega, gerente geral da Aliança da Terra, discutiu como sua organização está treinando comunidades locais e agricultores na fronteira da Amazônia e do Cerrado para conter os incêndios. Tradicionalmente, o fogo tem sido usado para limpar terras para plantações agrícolas nesta área, mas a seca e as temperaturas mais altas agora aumentam os riscos de queimadas que fogem do controle. “O fogo é muito complexo e a brigada não deve apenas observar o fogo, mas também considerar o vento, a vegetação e outros fatores,” disse Nobrega.
Em outras partes da Amazônia, o fogo está sendo totalmente excluído das práticas agrícolas. No nordeste do estado do Pará, a agricultora Leiliane Martins Batista descreveu com orgulho como ela converteu uma antiga plantação de mandioca em um próspero jardim agroflorestal sem o uso de queimadas. Agora, seu terreno tem uma mistura de dendê para óleo, cacau e pimenta, e “o solo também está mais rico, contribuindo para a diversidade de espécies,” disse ela.
Na verdade, a lenta disseminação de sistemas agroflorestais na Amazônia é um renascimento de práticas antigas, como explicaram os palestrantes em uma sessão sobre agroecologia, arqueologia e antropologia. “Estratégias agroecológicas levaram à Amazônia que agora conhecemos,” disse Eduardo Góes Neves, um professor de arqueologia brasileira da Universidade de São Paulo, descrevendo como as culturas indígenas cultivavam e domesticavam plantas como cacau, mandioca e açaí que são agora onipresentes no bioma. Antes da colonização, havia cerca de 10 milhões de povos indígenas vivendo na Amazônia, mas 90% morreram nos séculos após a chegada dos portugueses e espanhóis, o que levou à narrativa da Amazônia como um habitat amplamente desabitado e virgem.
Da mesma forma, Márcio Augusto Freitas Meira, um antropólogo do Museu Paraense Emílio Goeldi, falou sobre as antigas tribos da região do Rio Negro, que manejavam suas paisagens a partir das relações entre os humanos e todas as coisas não humanas, desde rochas, solo e água até as estrelas, constelações e o ciclo de vida anual. “Os índios chamam essa abordagem holística de “manejo do mundo” disse ele.
“A situação dos povos indígenas, não só do Rio Negro, mas, em geral, é de grande vulnerabilidade,” ele resumiu. “E a cultura sustentável das terras indígenas deve ser um dos principais instrumentos políticos – permitindo que as comunidades governem com base em seus próprios modelos.”
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