A Marcha das Margaridas em 2019. Foto: Richard Silva/PCdoB na Câmara, Flickr

Por dentro do maior movimento de trabalhadoras rurais da América Latina

Conheça as mulheres que descolonizam a terra no Brasil
04 junho 2025

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No Brasil, a posse de terra é concentrada na mão de homens – assim como no período colonial.

De acordo com o censo agrário mais recente do país, que data de 2017, os homens gerem 81,3% dos estabelecimentos rurais, dominando nos de média e grande escala.

Apesar das desigualdades, as mulheres estão à frente de movimentos sociais que lutam por mudanças sistêmicas.

A Marcha das Margaridas, por exemplo, conquistou vitórias importantes, assegurando a posse conjunta de terras e melhorando o acesso ao financiamento e ao crédito rural às mulheres.

Porém, como a distribuição de terras no Brasil se tornou tão desigual e quais movimentos liderados por mulheres lutam para mudar a situação?

Representação de um engenho por Henri Koster, 1816. Via Wikimedia Commons

Sesmarias: raízes coloniais de desigualdade no acesso à terra

A colonização do Brasil por países europeus, a partir do século 16, está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento de latifúndios, à destruição da natureza e enraizada em uma sociedade em que predominava a lógica patriarcal de exploração dos recursos naturais.

A pesquisadora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Débora Franco Lerrer, explica que a desigualdade na distribuição de terras no país iniciou por conta da colonização – e expandiu-se com a atuação da Coroa Portuguesa no Brasil.

O acesso à terra iniciou por meio das sesmarias – lotes distribuídos a um beneficiário, em nome do rei de Portugal. O intuito da coroa portuguesa era ocupar as terras brasileiras, garantindo sua exploração vinculada a monocultivos, como café e cana-de-açúcar.

“Eles davam terras aos que chamavam de ‘puro-sangue’: gente que tinha dinheiro e algum cabedal, que tinha condição de ocupá-las e ter escravizados, porque era assim que se explorava a terra no período colonial”, explica Lerrer.

Com a Independência do Brasil, em 1822, houve um vácuo de 28 anos na legislação brasileira, período em que a ocupação das terras se deu de forma espontânea – ou seja, quem desejasse um pedaço de terra poderia ocupá-la e começar a explorá-la.

Débora complementa que, com a proibição do tráfico africano, em 1850, o governo receava que os descendentes de escravizados e camponeses tivessem terras.

Mulheres escravizadas no Rio de Janeiro. Ilustração de Carlos Julião, c. 1771, via World History Encyclopedia

A promulgação da Lei de Terras por Dom Pedro II, naquele mesmo ano, alterou sua lógica e legitimação vigente.

Agora, era necessário comprar as terras, não apenas ocupá-las. A discussão dessa lei durou 25 anos e foi liderada por políticos que eram donos de grandes latifúndios.

Em um discurso no Senado Federal, na época de formulação dessa lei, o senador Costa Ferreira defendeu que as terras só fossem disponibilizadas aos “grandes senhores”, pois as consideradas minorias sociais não teriam força para expulsar os indígenas.

“Agora o trabalho era, teoricamente, livre, mas as terras eram privadas”, pontua Lerrer sobre a promulgação da lei.

Pelos 138 anos seguintes, a situação permaneceu praticamente a mesma. As minorias raciais não possuíam meios financeiros para acessar a terra e as mulheres eram tratadas como propriedade de seus maridos ou pais. As mulheres não eram sequer reconhecidas como sujeitos legais até 1916.

“Elas obtinham terras prioritariamente por meio de herança, e, ainda assim, quem fazia o gerenciamento desses bens eram os homens”, diz a advogada e pesquisadora Thayanna Barros, doutoranda em  Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Apenas com a constituição de 1988, que estabelece que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, o cenário começa a se alterar.

A Marcha das Margaridas em 2019. Foto: Isadora Mendes/Marcha Mundial das Mulheres, Flickr

Lacuna em dados de gênero prejudica políticas públicas

Porém, quão desigual é a distribuição de terras no Brasil? É desafiador responder à pergunta sem dados atualizados com recorte de gênero e raça.

Barros afirma que essa dificuldade atrasa a formulação de políticas públicas eficientes que visam a reduzir essa desigualdade histórica.

“Para serem criados, os programas precisam de estatísticas”, pontua a pesquisadora.

Os dados mais atualizados datam do último Censo Agropecuário, realizado em 2017 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Barros afirma que, mesmo consultando diversas bases distintas do governo federal, havia dificuldade de encontrar dados atualizados e unificados. Apesar de o Brasil estar se tornando mais progressista em diversos aspectos, essa transformação ainda necessita ser refletida na coleta de dados. 

“Estamos em um processo de mudança ideológica. Então os dados estatísticos não focam nos índices de sexo e raça ainda”, continua.

A falta de dados que corroborem a violência contra a mulher no campo também é questionada por Lizandra Guedes, dirigente nacional do setor de gênero do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

“Demandamos isso pro governo: ‘como vocês querem fazer políticas públicas sem dados? Vão fazer com base em quê, em sensação?’”, pergunta Guedes.

No entanto, o lobby político brasileiro na mão de latifundiários não ficou restrito ao período monárquico.

A Bancada Ruralista é considerada a maior do Congresso Nacional, somando 300 de 513 deputados na legislatura 2023-2027, e barra discussões de instrumentos que favoreçam a Reforma Agrária.

Access e posse de terras por sexo e raça no Brasil
Infográfico por Inês Mateus/GLF

Mulheres sem terra deram o tom da luta contra agronegócio

Pioneiro na luta pela distribuição de terras e contra os monocultivos, o MST nasceu na década de 1980 no Brasil.

Guedes afirma que as mulheres sempre foram protagonistas no movimento, embora o setor de gênero tenha sido criado somente nos anos 2000.

“O processo de organização das mulheres antes era mais orgânico”, pontua.

Hoje, eles percebem que é importante trazer o viés, porque, embora o protagonismo feminino no MST sempre tenha sido valorizado, há discussões enquanto sujeito que somente o setor dedicado a isso consegue fazer – por exemplo, levantando pautas específicas e avançando em discussões que desafiam o conceito binário de gênero.

Historicamente, ela destaca o papel de liderança feminino na luta pelo acesso e pela posse de terra.

Foi em 2006, após um protesto de 1.800 mulheres que ocuparam a empresa de produção de celulose Aracruz, que o viés de luta do MST se transformou de um movimento que focava nos latifúndios improdutivos para a luta contra o modelo de produção do agronegócio – que planta monocultivos, como soja e eucalipto, em grandes extensões de terra.

“Essa terra ainda está, em nossa visão, improdutiva. Eucalipto não faz floresta, soja é pra ração”, define.

“Então as mulheres têm um papel muito importante na reconfiguração da luta pelo campo. Podemos falar isso de boca cheia, orgulhosas”, comemora.

A Marcha das Margaridas leva esse nome em homenagem a Margarida Alves, ativista fundiária e sindicalista assassinada em 1983. Foto: Palácio do Planalto, Flickr

Margarida Alves: mãe da maior marcha de mulheres rurais da América Latina

É melhor morrer na luta do que morrer de fome”.

A frase atribuída à Margarida Maria Alves, agricultora familiar e uma das primeiras mulheres a assumir um cargo de direção sindical no Brasil, é símbolo da luta ecofeminista de mulheres trabalhadoras do campo, das águas e das florestas no país.

Quando tinha 22 anos, Margarida e a sua família foram expulsos do sítio em que viviam, em benefício de latifundiários, sem direito a colher as plantações que deixaram para trás.

Isso despertou seu interesse pela luta campesina. Como líder sindical, ela protocolou mais de 600 processos judiciais e era crítica pública de violações de direitos trabalhistas e das condições precárias de trabalho.

A sindicalista Maria da Soledade Leite, com 82 anos, conviveu com Margarida na época em que a agricultora familiar e líder sindical era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande.

Soledade conheceu Margarida no final de 1975, em contexto da Ditadura Militar brasileira (1964-85), quando poucas mulheres eram associadas ao sindicato.

“Quando se reclamava a ausência da mulher, os homens respondiam que elas não tinham que frequentar o sindicato se elas tinham animais e filhos para cuidar”, afirma Soledade.

“A Margarida era uma pessoa dinâmica. Não temia ameaça de usineiro, de pecuarista, de fazendeiro. Ela queria o direito dos trabalhadores fosse como fosse. Muitos diziam para ela fugir, o próprio marido pediu que ela deixasse o sindicato”, recorda.

No dia 12 de agosto de 1983, Soledade afirma que havia um movimento estranho na cidade de Alagoa Grande, que tem hoje cerca de 26 mil habitantes. 

“O pessoal via um carro estranho passeando pela cidade, principalmente pela rua dela, um Opala vermelho. Ninguém conhecia esse carro, mas ninguém suspeitou nada”, relata.

“No dia em que Margarida chegou de um evento, naquela sexta-feira (12 de agosto), por volta das 6 horas da tarde o bandido chegou e bateu na porta dela. Ela pensou que era um trabalhador, porque ela atendia em casa também se precisasse.”

“Mas quando ela saiu ele deu um tiro de espingarda 12 na cabeça dela”, relata embargada. “Foi uma coisa triste, dramática”.

Os assassinos nunca foram condenados.

“Eu também fui ameaçada. A Penha (outra líder sindical que compartilhou com elas naquele período e morreu em 1991) também foi ameaçada. Fui ameaçada na minha própria casa, mas graças a Deus estou aqui contando a minha história, o que elas não têm mais o prazer de fazer”, diz.

Em memória à Margarida, surgiu a Marcha das Margaridas, coordenada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), que congrega todos os sindicatos rurais brasileiros. 

Sua luta virou semente de um movimento que, hoje, é o maior liderado por mulheres trabalhadoras rurais da América Latina. A Marcha acontece em Brasília desde 2000 a cada quatro anos e, em sua última edição, realizada em 2023, reuniu mais de 100 mil mulheres

A Marcha das Margaridas em 2023. Foto: César Ramos

Mais do que uma marcha

“Esqueceram que Margarida era semente e se espalhou pelo Brasil e pelo mundo”, define a secretária de Mulheres da CONTAG, Maria José Morais Costa, conhecida como Mazé. É nessa secretaria que fica concentrada a organização da Marcha das Margaridas.

A Marcha das Margaridas não é apenas um protesto de rua ocasional. A própria marcha é a coroação de anos de organização e mobilização em prol de demandas coletivas.

“Costumamos dizer que estamos sempre em marcha. O momento em Brasília é de coroação, porque passamos quatro anos construindo uma pauta conjunta”, explica a coordenadora da Marcha.

Além da construção anterior ao evento, que é feita por meio de 27 federações estaduais – uma em cada estado brasileiro -, e por mais 16 organizações parceiras, é feito um acompanhamento posterior para continuar pressionando ministérios e órgãos pela implementação dos pedidos estruturantes entregues ao governo.

No dia da marcha, a União faz a devolutiva da pauta entregue previamente pelas margaridas.

“Em 2023, o que o governo anunciou não foi suficiente para nós”, reconhece Morais.

“Pensamos na construção de uma sociedade do Bem Viver, então a nossa pauta não é de resposta imediata, porque carrega questões estruturantes. Olha que o que eu tenho cobrado não é pouco!”, explica.

Respondendo às demandas do movimento, o governo autorizou a titulação conjunta da terra, em 2007, tornando-a um pré-requisito para o acesso a políticas públicas. Essa conquista permite segurança e estabilidade às mulheres, sobretudo em caso de separação.

Outro avanço é o crédito rural agora ser concedido às mulheres e programas específicos de financiamento ao público feminino.

“Vamos continuar lutando para que não existam mulheres nem homens sem seu pedaço de terra”, resume.

“A marcha muda a vida das mulheres não só com as políticas públicas que a gente conquista, mas porque elas se libertam de violências dentro de casa, aprendem seus direitos e a levantar a voz. Elas dizem que a marcha faz com que elas se vejam como feministas”, diz.

Margaridas do Piauí com o presidente Lula e ministros na marcha de 2023. Foto cortesia de Maria da Cruz.

“Brotam margaridas do asfalto quente”

Participar do evento presencialmente é um esforço que mobiliza sindicatos do Brasil inteiro. Alguns começam a se organizar até um ano antes do evento para garantir que consigam levar margaridas a Brasília. 

“A gente se mobiliza financeiramente através da base com os bingos, rifas e leilão, até mesmo com patrocínio de alguém”, conta Maria da Cruz, secretária de Mulheres do Sindicato de José de Freitas, localizado no Piauí, estado do norte brasileiro.

Em 2023, levaram 13 margaridas de José de Freitas. Ela comenta que mulheres que nunca tinham ido às vezes estranham o ambiente – porque é necessário levar o próprio colchão e dormir no chão em alojamentos improvisados na capital federal.

“É uma luta que a gente adora, mas não tem conforto. Quando pensamos que tem avanço em políticas de mulheres sabemos que é importante”, explica.

Em 2023, Maria relata que foram arrecadados quase R$ 5 mil, valor que é utilizado para cobrir despesas com o transporte das mulheres a Brasília. Elas alugaram uma van de José de Freitas a Teresina e depois tomaram um ônibus com outras companheiras de cidades das redondezas. O grupo levou cerca de um dia e meio para percorrer os 1.730 quilômetros para chegar à capital federal.

“Parece que vai brotando margaridas do asfalto quente de Brasília. Me arrepio toda”, confessa Morais, quando fala no evento presencial.

“No dia da marcha, Brasília treme, é a coisa mais linda de se ver”, diz Soledade.

A Marcha das Margaridas, além de lutar por mais direitos às mulheres rurais, também preserva a memória de quem veio antes.

Isso inclui reconhecer nomes como o de Soledade, que é repentista – ou seja, improvisa versos rimados com o violão. Na última Marcha das Margaridas, realizada em 2023, ela foi responsável pela abertura do evento que carrega o nome da amiga.

“A nossa luta brotou muitos frutos. Nos sentimos felizes, honradas e orgulhosas, porque a luta de Margarida não foi em vão, a de Penha não foi, e a minha também não foi”, celebra Soledade.

Manifestantes homenageiam Alves e Maria da Penha, colega sindical que morreu em circunstâncias suspeitas em 1991. Foto: Humberto Pradera/PSB Nacional 40, Flickr
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