Salvador é considerada o berço da cultura afro-brasileira – mas como é realmente a vida dos moradores negros da cidade? Foto: Nathana Rebouças, Unsplash

Revelado: Racismo ambiental na capital afro do Brasil

Salvador é a cidade com mais pessoas negras fora da África - mas comunidades quilombolas sofrem o impacto da poluição
07 julho 2025

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É irônico, mas o racismo ambiental é comum em uma cidade que abriga mais pessoas negras do que qualquer outro lugar fora da África.

Salvador, a capital do estado brasileiro da Bahia, localizada no nordeste do país, tem uma população de 2,4 milhões de habitantes, 80% dos quais se identificam como pretos ou pardos.

Porém, mesmo nesse berço da cultura afro-brasileira, as comunidades negras estão enfrentando o que dizem ser racismo ambiental perpetrado por instituições do Estado brasileiro e por grandes indústrias.

A cidade foi um importante centro do comércio atlântico de pessoas escravizadas durante a época colonial portuguesa. Atualmente, abriga pelo menos seis quilombos, que são comunidades afro-brasileiras originalmente fundadas por pessoas anteriormente escravizadas e agora legalmente reconhecidas na constituição brasileira.

Essas comunidades lutam contra militares da Marinha, uma refinaria de petróleo e um grande complexo industrial e petroquímico, que estão poluindo as águas de onde tiram seu sustento por meio da pesca e da mariscagem.

Salvador
Salvador foi a primeira capital do Brasil colonial e um centro do comércio de escravizados, cujo legado é sentido até hoje. Foto: Jim & Robin, Flickr

O que é racismo ambiental?

No Brasil, como em muitos outros países, as comunidades negras e indígenas sofrem um impacto desproporcional dos riscos ambientais à saúde.

Isso geralmente ocorre porque eles são forçados a viver perto de fontes de poluição e resíduos tóxicos, como usinas de energia, minas, aterros sanitários e rodovias.

O racismo ambiental é definido como “as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações vulnerabilizadas”, escreve a pesquisadora Tania Pacheco em um artigo amplamente citado no Brasil.

Além da destruição do meio ambiente e dos modos de vida, cultura e trabalho das pessoas, Pacheco acrescenta que essas comunidades também são privadas do acesso a serviços básicos, como água potável e saneamento, assistência médica, empregos e educação de qualidade.

Assim, o racismo ambiental opera de forma sistêmica, especialmente em quilombos e comunidades indígenas.

De acordo com Daiane Batista de Jesus, pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e natural do quilombo Alto do Tororó, o racismo ambiental começa com a própria escolha – feita por atores públicos e privados – de onde instalar projetos ambientalmente prejudiciais que ameaçam a própria existência e continuidade de territórios preservados.

“Sempre nos perguntamos: por que somos tratados de forma diferente? Optar por não proteger essas comunidades é uma decisão política”, explica Daiane.

Alto do Tororó
O quilombo do Alto do Tororó é cercado por uma base naval, um porto e duas rodovias bastante movimentadas. Foto: Cândida Schaedler

Alto do Tororó: cercado pela Marinha do Brasil

O Alto do Tororó é um quilombo fundado por africanos escravizados e indígenas tupinambás no século 18.

Localizado em uma península estreita no extremo norte de Salvador, entre a Baía de Todos os Santos e a Baía de Aratu, o território já foi um refúgio com tranquilidade e abundância de animais, peixes, mariscos e frutas.

Daiane se lembra de ter crescido ouvindo como sua avó costumava correr livremente pelos manguezais, pegando caranguejos nas águas ao redor.

O cenário mudou no final da década de 1960, quando a Base Naval de Aratu foi construída, cercando a comunidade e restringindo o acesso às águas de ambas as baías.

Desde então, o Porto de Aratu e o Complexo Industrial de Aratu (CIA) – incluindo uma fábrica de produtos químicos e um estaleiro – também foram construídos na área, deixando o quilombo cercado por uma infraestrutura altamente poluente.

“Nunca vivi a realidade de minha avó, mas sentia falta do que ela descrevia”, lembra Daiane. “Senti que isso foi tirado de mim.”

Fátima Lima é uma líder quilombola e presidente da Associação de Mulheres Akomabu no Alto do Tororó.

Ela diz que a comunidade perdeu cinco coroas – áreas onde as mulheres tradicionalmente colhem mariscos. Restam apenas quatro, e todas elas estão secas, com pouquíssimos mariscos.

“Eles nos cercaram, a gente vive aqui como gado”, diz Fátima.

Fátima explica que o aratu (Aratus pisonii) – uma espécie de caranguejo que deu nome à baía – não pode mais ser encontrado na área do quilombo, que soma 1.500 moradores.

O quilombo agora também é cercado por duas estradas principais, construídas para transportar produtos agrícolas em direção ao porto. Algumas casas apresentam, por essa questão, rachaduras nas paredes devido às vibrações causadas pelo fluxo constante de caminhões e outros veículos.

“A liberdade foi tirada da comunidade”, diz Fátima. “Uma comunidade que costumava ser livre para usar a terra, explorar a mata e cuidar dos animais e da floresta agora está restrita.”

Para Daiane, o racismo ambiental se resume a uma questão simples. “Se o Porto de Aratu contribui com uma parcela tão grande do PIB da Bahia, por que essas comunidades não crescem junto?”, pergunta.

“A gente reclama, mas ninguém vem ver ou arrumar nada, porque o que está nos destruindo é legal. Eles têm licenças ambientais”, revela Fátima.

“Costumávamos viver disso [da pesca e mariscagem]. Hoje, apenas sobrevivemos, porque o que ganhamos mal dá para nos sustentar.”

Ilha de Maré: Envenenada pelo petróleo

Ao largo da costa do Alto de Tororó fica a Ilha de Maré, uma ilha na Baía de Todos os Santos onde 90% da população é preta ou mestiça – mais do que qualquer outro bairro de Salvador.

Além de estar próxima ao Porto de Aratu, a ilha também fica perto de uma refinaria de petróleo e de várias fábricas de produtos químicos.

Antes operada pela Petrobras, a refinaria foi privatizada durante o governo de Jair Bolsonaro em 2021 e agora pertence à Mubadala Capital, sediada nos Emirados Árabes Unidos, parte do fundo soberano de Abu Dhabi.

Aqui, os moradores sofrem com altas taxas de câncer, não têm acesso a saneamento básico e enfrentam escassez de serviços de saúde para tratar alergias e doenças relacionadas à poluição da água.

Isso inclui o envenenamento por chumbo, que tem efeitos graves nos sistemas neurológico, cardiovascular, gastrointestinal e hematológico dos moradores.

Em 2010, um estudo com 116 crianças da Ilha de Maré constatou que 89% delas apresentavam níveis de chumbo no sangue acima de 10 microgramas por decilitro (μg/dL), com algumas chegando a 19 μg/dL.

Em comparação, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera aceitável até 5 mg/dL, enquanto os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos enfatizam que nenhum valor acima de zero é “livre de qualquer risco”.

Quando o Porto de Aratu foi inaugurado, em 1975, foi a primeira vez que a comunidade viu a eletricidade de perto, apesar de não ter sido conectada à rede elétrica até 1980, e a água encanada só ter chegado no final da década de 1990.

Na época, a líder comunitária e moradora Marizelha Lopes – cuja neta foi uma das crianças estudadas na pesquisa – lembra-se de seu avô dizendo: “Esse é o fim do nosso povo”.

“Hoje, vemos que ele foi um profeta”, reflete.

O estudo de 2010 constatou que, quanto maior a frequência de consumo de peixes e frutos do mar na dieta de uma criança, maior a concentração de chumbo no sangue e cabelo dela.

Desde então, outro estudo acadêmico confirmou altos níveis de contaminação por chumbo nos mariscos consumidos pela comunidade.

A irmã de Marizelha, Regina Menezes Lopes, é marisqueira e moradora do quilombo de Bananeiras, na ilha. Desde que o porto e o complexo industrial foram construídos, ela contabilizou 90 pessoas que morreram de câncer somente no quilombo onde vive. Ela apresentou os números em uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Salvador em março deste ano.

“Morrem mais mulheres do que homens”, conta ela, com a voz embargada. “No passado, as pessoas viviam até mais de 100 anos e morriam de velhice. Agora estamos perdendo crianças para o câncer.”

“Eu mesma perdi uma irmã com câncer de intestino aos 50 anos de idade”, acrescenta.

Em 2016, o bairro enlutou a morte de uma criança de 12 anos com câncer ósseo. “No início, eles amputaram o braço dela, achando que isso resolveria o problema. Mas depois encontraram metástases, e ela não sobreviveu”, conta Marizelha Lopes.

Marizelha também observa que os médicos se recusaram a mencionar no relatório médico que a menina morava perto de um complexo petroquímico, como a comunidade havia solicitado.

Ao refletir sobre o racismo ambiental, ela relembra a relação profunda e ancestral que as comunidades quilombolas nutrem com a terra. “Se temos atividades que dependem da pesca, também estamos falando de impactos econômicos na comunidade, para além da saúde.”

“O racismo que sofremos é institucional e estrutural”, completa. “As mesmas pessoas que nos escravizaram são as que ainda tomam as decisões erradas. Ninguém sobrevive sem água, terra, comida ou cultura. O que estão fazendo conosco é extermínio.”

Gessivalda dos Santos Alves, também marisqueira, acrescenta que percebeu muitas transformações na Ilha de Maré desde a chegada do polo petroquímico e das indústrias.

“Costumávamos ser uma ilha rica em frutas e pássaros”, diz ela. “Hoje, não temos mais essa abundância.”

Gessivalda diz que muitas vezes acorda no meio da noite pensando que deixou o gás de cozinha ligado, tamanha a intensidade do odor que emana do complexo industrial ao redor.

“Mas a gente fala, fala, fala e ninguém nos escuta”, lamenta.

Eliete Paraguassu
Eliete Paraguassu é a primeira mulher quilombola a ocupar o cargo de vereadora em Salvador. Foto: Cândida Schaedler

Combate ao racismo ambiental em espaços políticos

De acordo com os líderes quilombolas, a principal arena para transformar o racismo ambiental é a esfera política.

Foi com essa agenda – e uma visão ecológica – que Eliete Paraguassu foi eleita a primeira mulher quilombola a servir como vereadora em Salvador no ano passado.

Nascida e criada na Ilha de Maré, ela diz sofrer racismo persistente de seus colegas conselheiros.

“Salvador é um quilombão”, defende. “O que sustenta a cidade são suas águas e a pesca.” Ainda assim, ela ressalta que a cidade ainda não criou políticas públicas que levem em conta essa realidade.

“Eles não me querem aqui dentro [na Câmara de Vereadores]. A política não foi feita para corpos como o meu”, acrescenta.

Para Eliete, a denúncia é sua ferramenta mais poderosa na luta contra o racismo. Sua filha era uma das crianças da pesquisa de 2010 na Ilha.

“Esse estudo apenas confirmou o que já vínhamos denunciando, embora sem provas ou dados oficiais”, explica. “Sempre nos disseram que somente com dados poderíamos tomar medidas legais.”

Como vereadora, ela defende a realização de exames epidemiológicos em todos os moradores da Ilha de Maré e a medição dos níveis de metais pesados no meio ambiente, nos peixes e frutos do mar da comunidade.“Queremos que a Baía de Todos os Santos seja descontaminada”, afirma. “Somos os guardiões desta cidade e queremos construí-la por meio do bem viver.”

Fátima Lima
A líder quilombola Fátima Lima está lutando contra as injustiças que o Alto do Tororó enfrenta. Foto: Cândida Schaedler

“Somos peixes pequenos lutando contra tubarões”

As comunidades entendem que o problema que enfrentam é sistêmico – devido, em grande parte, ao racismo.

É por isso que exigem soluções que vão desde reparações financeiras pela perda de seus meios de subsistência até a implementação de medidas mais amplas em nível federal.

Ainda assim, Fátima reconhece o desequilíbrio de poder: “Somos peixes pequenos lutando contra tubarões”.

O Alto do Tororó está solicitando uma audiência pública para que a Marinha do Brasil tome conhecimento oficial da situação e o governo possa agir para garantir a segurança da comunidade, evitando maiores danos às residências locais.

Eles também estão solicitando indenização para as marisqueiras, que perderam sua principal fonte de renda.

Na Ilha de Maré, as soluções que a comunidade propõe também são sistêmicas.

“Queremos que seja criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar questões relacionadas ao licenciamento ambiental”, diz Marizelha Lopes. “Ainda não podemos provar nada, mas temos fortes suspeitas de que há irregularidades.”

“Também rejeitamos esse modelo de expansão à custa da natureza”, acrescenta. “Chega de projetos de desenvolvimento, chega de poços de petróleo. Queremos desmatamento zero e acabar com tudo o que prejudica a floresta, os manguezais, os rios e a Mata Atlântica.”

Esses ativistas locais estão enfrentando todo um sistema: as atividades econômicas que envolvem suas comunidades representam uma grande parcela do Produto Interno Bruto (PIB) da Bahia.

O Porto de Aratu, por exemplo, movimentou mais de 6,5 milhões de toneladas de carga em 2024, representando 48% da atividade portuária total do estado baiano.

Em maio, o governo federal brasileiro anunciou um pacote de investimentos recorde para o Porto de Aratu e dois outros portos na Bahia, totalizando R$ 1,5 bilhão.

O investimento deve aumentar em seis vezes a capacidade de carga do complexo de Aratu, de 2 milhões para mais de 12,5 milhões de toneladas por ano. O principal objetivo é exportar com mais eficiência a produção de grãos da Bahia.

Enquanto isso, a refinaria perto da Ilha de Maré agora é responsável por 17% da receita tributária do estado da Bahia e 10% do PIB do estado.

“Eles acreditam que o PIB é mais importante do que o modo de vida de uma comunidade tradicional”, reflete Daiane.

Para ela, tirar um porto daquele local é desafiador quando se pauta o modelo de desenvolvimento em jogo.

“É como se olhassem a comunidade de forma a atrasar o desenvolvimento da Bahia, como ignorantes, como lugares de não desenvolvimento. Então se pautam dois diferentes modelos”, explica.

Esses conflitos abrangem autoridades federais, estaduais e municipais, bem como agentes privados. O Ministério da Igualdade Racial (MRI) diz que não pode falar em nome do governo brasileiro como um todo sobre o assunto.

“Apesar disso, com o passar do tempo, entendemos que a melhor forma de atuar com políticas públicas de impacto é escutando e construindo soluções a partir do diálogo”, explica o secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos do MRI, Ronaldo dos Santos.

O secretário aponta para as políticas nacionais e internacionais desenvolvidas pelo MRI e enfatiza que essa agenda deve ser abordada por meio da cooperação constante com outros órgãos governamentais.

Apesar da perspectiva assustadora em nível macro, as comunidades não têm intenção de sair dos locais históricos onde vivem. Em vez disso, eles buscam maneiras de dar visibilidade à luta.

No Alto do Tororó, a comunidade resgata tradições que ficaram apagadas nas últimas décadas, como a Festa da Marisqueira e do Pescador.

A tomada de uma posição pública contra os “tubarões”, contudo, também pode ter um preço. O Brasil continua sendo o segundo país mais mortífero do mundo para defensores ambientais, e uma amiga de Fátima, a líder quilombola Bernadete Pacífico, conhecida como Mãe Bernadete, foi assassinada em 2023, em Salvador.

Mesmo assim, Fátima não se intimida.

“Não tenho medo da luta”, diz ela. “Eu tenho medo é de perder minha essência.”

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