Por Suzana Camargo
Esta reportagem foi produzida em colaboração com a Mongabay para aumentar a conscientização sobre tópicos relevantes para a próxima Conferência Digital Global Landscapes Forum Amazônia: Ponto de Inflexão (21 a 23 de setembro de 2021).
Desde 2019, o desmatamento e os incêndios fizeram com que a Amazônia brasileira perdesse cerca de 10 mil km2 de cobertura florestal por ano, um aumento bastante expressivo e alarmante em relação aos registros da década passada, quando a redução anual da floresta beirava os 6.500 km², de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Todavia, até bem recentemente, especialistas sempre quantificaram apenas o tamanho das áreas de vegetação destruídas, mas nunca a perda da biodiversidade causada pelo fogo. Agora um novo estudo científico divulgado na revista Nature – “How deregulation, drought and increasing fire impact Amazonian biodiversity” (Como a desregulamentação, a seca e o aumento do fogo impactam a biodiversidade amazônica) –, traduz em números esse impacto: entre 93% e 95% de 14 mil espécies de animais e plantas já sofreram algum tipo de consequência, em menor ou maior grau, provocada pelos incêndios.
O estudo, que envolveu pesquisadores de universidades e instituições dos Estados Unidos, Brasil e Holanda, analisou dados sobre a distribuição do fogo na Amazônia entre 2001 e 2019 – este último, certamente, um dos anos em que a região teve um índice recorde de grandes queimadas, apesar do grande volume de chuvas.
“Na época, os incêndios chamaram muito a atenção da mídia internacional e ficamos interessados em entender melhor as consequências disso, onde o fogo aconteceu e que áreas eram ocupadas por fauna e flora”, revela o biólogo Mathias Pires, professor e pesquisador do Departamento de Biologia Animal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Com a ajuda de imagens de satélite, o grupo sobrepôs as áreas afetadas pelos incêndios, entre 103.079 e 189.755 km² da Floresta Amazônica, com aquelas de ocorrência de 11.514 espécies de plantas e 3.079 de animais (apenas vertebrados, aves e mamíferos).
“Ficamos surpresos ao descobrir que o habitat da maioria das espécies de plantas e animais já foi afetado por incêndios e que esse impacto continuou a aumentar ao longo do tempo, apesar dos melhores esforços de conservação”, afirma Brian Enquist, professor de Ecologia and Biologia Evolutiva da Universidade do Arizona e autor sênior do artigo.
A análise indicou que, para algumas espécies, mais de 60% do habitat foi queimado pelas chamas em algum período dessas últimas duas décadas. E embora para a grande maioria de plantas e animais amazônicos a área impactada represente menos de 10% de sua ocorrência, os pesquisadores ressaltam que, quando se trata da maior floresta tropical do mundo, pouco pode ser muito. “Qualquer habitat perdido já é demais”, destaca Danilo Neves, professor de Ecologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O brasileiro explica que alguns grupos de espécies raras e ameaçadas de extinção têm distribuição restrita na Amazônia, como por exemplo, o macaco-aranha-de-cara-branca (Ateles marginatus), endêmico do Brasil e que, segundo a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) é considerado em perigo de extinção, ou seja, possui grande chance de desaparecer da vida selvagem.
“Ele é uma espécie que depende muito da floresta em pé. Os macacos precisam das árvores para seu deslocamento, alimentação e abrigo. Eles quase nunca se deslocam ou se alimentam no chão”, diz Pires.
O macaco-aranha-de-cara-branca teve 5% de sua área de ocorrência afetada pelo fogo. Pode ser pouco, mas não para os animais. “5% de área impactada em 20 anos é muita coisa, o que acontecerá daqui a mais 20 anos, ou 50… Precisamos levar em consideração que do ponto de vista biológico é uma perda de habitat muito acelerada”, avalia o biólogo.
Pires salienta que são os primatas os mais ameaçados pelos incêndios da Amazônia. Para fazer um paralelo com outra espécie de animal, cita uma ave, a cigana (Opisthocomus hoazin). Também vista como ameaçada de extinção pela IUCN, por ter uma grande área de distribuição em praticamente toda a Amazônia, acaba sendo proporcionalmente menos afetada pelos incêndios na floresta.
E, no caso das plantas, que diferentemente dos animais não podem fugir das chamas, a situação se revela mais preocupante. A espécie Allantoma kuhlmannii teve cerca de 35% de sua distribuição impactada pelo fogo. Ao contrário do Cerrado, onde as plantas apresentam maior resistência à seca e às queimadas, a vegetação da Amazônia está adaptada a ambientes fechados e solo úmido; quando as chamas passam, dificilmente conseguem se recuperar. Muitas vezes, aquele habitat é perdido para sempre.
Como o objetivo do estudo era somente quantificar o número de espécies impactadas pelo fogo, não foi pesquisado se já pode ser percebida uma alteração no comportamento de animais ou na mudança de habitat.
“Dada a escala, o escopo e o impacto crescente das queimadas em toda a Amazônia, as populações de animais já devem ter sido afetadas pela perda de habitat e pela abertura de áreas mais remotas para a caça”, acredita Enquist.
Ao fazer o cruzamento de dados sobre queimadas versus ocorrência de fauna e flora, os pesquisadores perceberam três ciclos de incêndios na Amazônia, associados diretamente com os diferentes momentos políticos nos quais o Brasil se encontrava.
Entre 2001 e 2008, a falta de uma fiscalização ambiental rigorosa no país servia de combustível para o registro de incêndios mais frequentes e em áreas extensas. No período seguinte, entre 2009 e 2018, as políticas de controle ao desmatamento conseguiram conter o desflorestamento, mas em 2016, apesar de a lei brasileira para a proteção do meio ambiente ter sido considerada um exemplo mundial, houve um afrouxamento na fiscalização – com isso, o desmatamento voltou a crescer na Amazônia.
Em 2019, com a posse do atual presidente, Jair Bolsonaro, a situação agravou-se ainda mais. Os altos índices de destruição da floresta continuaram, impulsionados por um discurso do Governo Federal a favor da mineração, contra a demarcação de terras indigíneas e em detrimento do trabalho de organizações não-governamentais.
O levantamento internacional aponta que, nos últimos anos, as queimadas aconteceram em regiões mais centrais da Amazônia, inclusive próximas a rios, o que é uma nova tendência, já que não ocorria antes. “O fogo consolida o desmatamento. Áreas desmatadas podem se regenerar, mas isso demanda muito mais tempo e investimento depois dos incêndios”, afirma Neves.
O Brasil já sabe o que precisa fazer para voltar a preservar a Amazônia, reduzir o desmatamento, evitar incêndios e consequentemente, proteger o habitat de milhões de espécies de plantas e animais. A fórmula existe e foi usada no passado: maior comprometimento com a causa ambiental, fiscalização eficiente, monitoramento da floresta e valorização dos órgãos do setor.
Para os brasileiros Danilo Neves e Mathias Pires não há dúvida que esse é o único caminho para reverter o atual cenário de devastação e perda de habitat. “A gente sabe o que fazer. Já resolvemos o problema antes”, assegura o pesquisador da Unicamp.
Segundo Enquist, as evidências são incontestáveis: “Nossos resultados demostram claramente que o início de políticas voltadas para a proteção da floresta teve um efeito dramático na taxa de impacto dos incêndios e na biodiversidade amazônica”.
Para o pesquisador norte-americano, se nada mudar, “veremos a degradação contínua de habitats da maioria das espécies amazônicas. À medida que o fogo e o desmatamento agora se movem para o coração da Amazônia e para regiões que abrigam espécies em menores áreas geográficas, aumenta dramaticamente o risco de extinção de milhares delas”.
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