Enchente em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Mauricio Tonetto / Secom, Flickr

O que podemos aprender com as enchentes no Sul do Brasil?

À medida que desastres climáticos crescem, países vulneráveis têm dificuldade de acesso a recursos para adaptação
10 junho 2024

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Enchentes históricas se tornaram comuns no Sul do Brasil e acontecem quase uma década antes do previsto por cientistas como consequência da mudança do clima. 

O Rio Grande do Sul, estado brasileiro que soma 11 milhões de habitantes e o tamanho do Reino Unido, foi devastado por enchentes, em uma das maiores tragédias ambientais já reportadas no Brasil. 

Até a publicação deste artigo, são 173 mortos e 38 desaparecidos no estado localizado mais no extremo sul do Brasil. Mais de 615 mil pessoas tiveram que deixar suas residências – e ainda não se sabe o número exato de quantas nunca mais poderão voltar.

Há menos de um ano, o estado já havia enfrentado enchentes históricas que devastaram cidades e causaram dezenas de mortes. O que ocorreu este ano, porém, foi sem precedentes – e afetou 476 das 497 cidades do território. Cientistas dizem que a crise do clima tornou a ocorrência do desastre duas vezes mais provável.

Nesse contexto inédito, os olhos do Sul Global estão voltados à política climática brasileira. Em 2025, o Brasil sediará a COP30, e este ano recebe as reuniões do G20, além de ocupar a presidência rotativa do grupo.

Diante de um dos maiores desastres ambientais do país, como o Brasil vai se adaptar frente aos eventos climáticos extremos? E como as políticas brasileiras podem servir de inspiração a outros países?

Canoas
Devastação na cidade de Canoas, Rio Grande do Sul. Gustavo Mansur / Palácio Piratini, Flickr

Como o Brasil se adapta à crise climática?

“O caminho é adaptação. Não dá pra gente achar que não vai acontecer de novo”, resume o professor de Ecologia da Universidade Federal de Rio Grande (FURG), Marcelo Dutra da Silva, sobre as enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul.

Para ele, cidades inteiras vão ter que mudar de lugar – o que não vai acontecer de uma só vez.

“Mas é preciso começar com mudanças a partir de agora”, defende, afirmando que as primeiras precisam ocorrer no Plano Diretor de cada município atingido.

O Plano Diretor é a legislação de cada cidade que orienta o desenvolvimento urbano, compreendendo a ocupação do território, a preservação da memória e do meio ambiente e fornecendo diretrizes adequadas sobre locais de construção.

“Os recursos que chegarem à reconstrução precisam estar vinculados a uma nova estratégia de ocupação das cidades”, afirma Dutra. “Não podemos perder a oportunidade dessa reconstrução. As cidades já têm que começar a se mover para áreas seguras. É preciso incluir um pouco mais de orçamento em prevenção, porque é um investimento baixíssimo comparado à recuperação”, comenta. 

Um relatório de 2019, elaborado pelo Instituto Nacional de Ciências da Construção (National Institute of Building Sciences), localizado nos Estados Unidos, aponta que a cada dólar investido em medidas de prevenção a desastres são economizados 11 dólares em recuperação.

De forma prática, contudo, o investimento ainda é ínfimo quando se pensa em adaptação e prevenção no Brasil. Uma reportagem publicada este ano pelo jornal Folha de São Paulo, um dos principais do país, revelou que apenas 3% do orçamento federal destinado à gestão de desastres foi direcionado para prevenção. R$ 36 milhões foram investidos para evitar desastres, enquanto R$ 1,05 bilhão foi gasto para lidar com suas consequências.

Resgate
Uma equipe de resgate evacua residências de helicóptero na região metropolitana de Porto Alegre. Lauro Alves/SECOM, Flickr

Adaptação precisa ser feita de forma participativa

“A adaptação é um processo, mas é importante que as pessoas entendam que precisa ser feito olhando para o novo clima, não para o que já era”, explica a presidente do Instituto Talanoa, Natalie Unterstell.

A adaptação climática considera medidas de resiliência, de infraestrutura, de novas construções e de replanejamento urbano.

Para Natalie, é muito importante que a adaptação climática seja feita com o protagonismo das comunidades e pessoas afetadas. Caso contrário, pode haver o que se chama de “más adaptações”, aquelas em que não se considera a justiça climática.

Isso significa considerar a percepção de que os efeitos das mudanças climáticas são desproporcionais a comunidades mais vulneráveis, como povos indígenas, quilombolas, pessoas racializadas, mulheres, crianças e residentes de periferias de cidades e de zonas rurais.

Em caso de populações que precisam deixar os locais em que vivem, por exemplo, é mais importante ainda que haja esse protagonismo de quem é afetado.

“Agora, a própria não adaptação também é uma injustiça climática. Não permitir e não prover adaptação é um problema”, diz Unterstell.

No contexto do Rio Grande do Sul, Marcelo Dutra sugere a criação de cidades que absorvem água, em vez de obstruir seu fluxo e drenagem. Nessa operacionalização, ele reforça a necessidade de cooperação, das três esferas governamentais – municipal, estadual e federal -, além de contar com empresas, que precisam se engajar na questão ambiental.

Porto Alegre embaixo d’água
A região central de Porto Alegre ficou embaixo d’água. Gustavo Mansur/ Palácio Piratini, Flickr

A Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul estima que 9 de cada 10 indústrias do Rio Grande do Sul tenham sido diretamente afetadas pelas enchentes, com perda de maquinário e infraestrutura.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a indústria do estado responde por 6,1% do PIB brasileiro. Há expectativa de que a enchente freie o crescimento econômico do Brasil.

Para Stela Herschmann, especialista em Política Climática do Observatório do Clima – coalizão de organizações da sociedade civil brasileira -, é preciso executar políticas de adaptação que considerem toda a gestão das cidades.

“O orçamento da União tem que ser pensado tendo como premissa as mudanças climáticas”, resume a especialista do Observatório do Clima.

“As obras de infraestrutura não podem mais ser pensadas para um clima que não existe mais. Se você pegar o Programa de Aceleração de Crescimento [programa brasileiro que investe em obras e infraestrutura social visando ao crescimento econômico e aportou R$ 1,7 trilhão em 2023], um percentual muito pequeno foi direcionado a cidades resilientes. Temos que pensar em todo um programa resiliente. Qualquer infraestrutura precisa estar condizente com um cenário de mudança climática”, explica Herschmann.

Os líderes políticos brasileiros já trabalham para envolver a sociedade civil na construção de planos de adaptação. Na abertura da primeira reunião de consulta popular para a construção do Plano Clima – Adaptação, realizada dia 17 de maio, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil, Marina Silva, citou as enchentes no Rio Grande do Sul. 

“A agenda de adaptação é estratégica. Aquilo que eram considerados eventos extremos na antiga normalidade provavelmente serão o novo normal, e o que será o extremo ainda nem sabemos o que é. Temos que estar preparados e adaptados, mas também continuar a agenda de mitigação”, defendeu a ministra.

“A sociedade civil e a comunidade científica já fizeram sua parte. Quem ainda não fez sua parte foram os governos e as empresas”, completou Silva.

Lula
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa na 28ª Conferência do Clima da ONU (COP28), em Dubai, em dezembro de 2023. UNclimatechange, Flickr

Acesso a financiamento ainda é desafio a países do Sul Global

No contexto internacional, o maior desafio enfrentado por países do Sul Global é quanto aos recursos para as medidas de adaptação.

Em diversas ocasiões, o presidente Lula cobrou a chegada dos US$ 100 bilhões anuais que foram prometidos por nações desenvolvidas. O compromisso foi acordado na COP15, em 2009, e endossado seis anos depois pelo Acordo de Paris. A meta só foi cumprida recentemente

Na discussão sobre financiamento, um dos principais pleitos da sociedade civil é que se aumente os recursos para medidas de adaptação. Em contexto geral, os recursos fluem mais em direção a medidas de mitigação. 

Conforme Stela Herschmann, a demanda internacional é que se dobre o aporte para adaptação – e, assim, se chegue mais próximo a uma divisão equânime de recursos para os dois caminhos.

Houve progresso em financiamento com o Fundo de Perdas e Danos, anunciado na COP28, ano passado, em Dubai. A criação desse mecanismo foi determinada na COP27, no Egito, e recebeu doações voluntárias de países como Japão, Emirados Árabes Unidos, Reino Unido e Alemanha.

Ele ficará temporariamente hospedado no Banco Mundial e será administrado por um conselho. Até o momento, contudo, não foi distribuído nenhum valor entre países mais vulneráveis, e o montante arrecadado soma apenas US$ 660 milhões, muito aquém do necessário para recuperar comunidades afetadas.

Conforme Herschmann, a grande questão em relação ao financiamento climático é que nunca haverá recursos para reparar, adaptar e mitigar todos os aspectos da mudança climática com aporte internacional.

“O fundo nunca vai dar conta de tudo. Precisamos ter dinheiro para reparar e para socorrer os países, mas sempre teremos menos dinheiro do que os impactos da mudança climática. Por isso, quanto mais próximos da meta de 1,5 ºC conseguirmos ficar, melhor”, explica.

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