As 300 tribos indígenas que vivem no bioma amazônico estão pedindo a proteção legal de 80% do bioma. Christian Braga, Greenpeace

A preservação da Amazônia depende de investimento político, inclusive do poder indígena

O dia 3 do GLF Amazônia destaca a necessidade de vincular os sistemas ecológicos e sociais da Amazônia nas políticas
27 setembro 2021

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Três da manhã é quando muitos índios Kichwa acordam para se sentarem juntos na Amazônia equatoriana e compartilharem tabaco e outras ervas antes de irem para suas lavouras – campos agrícolas – e começarem seus dias. É nesse momento, pouco antes do nascer do sol, que suas histórias ancestrais são contadas e recontadas, para garantir que as informações contidas sobrevivam para as gerações futuras.

Os Kichwa, como muitos grupos indígenas da Amazônia, estão presos em meio a realidades passadas e presentes. Por um lado, eles são os destinatários da migração reversa das cidades, com ex-membros da comunidade e outros moradores da cidade retornando aos seus sistemas alimentares tradicionais e práticas de cura; por outro lado, os idosos Kiwcha, que nas gerações anteriores viveram bem mais de 100 anos, agora costumam morrer aos 60 anos. E embora “queremos fortalecer a economia, queremos promover a indústria”, disse Dary Aguinda, presidente da Associação de Mulheres Kichwa Amukina, suas frutas e vegetais orgânicos são frequentemente subvalorizados nos mercados, em comparação com a produção ampliada através do uso de pesticidas.

Podemos dizer que a realidade que Aguinda descreve reflete a do bioma amazônico como um todo: lutando para manter a saúde de seu passado enquanto navega para um futuro que demanda – e deseja – rentabilidade econômica, com todos as rugas de sua integração em sistemas globais suavizadas.

Uma menina Kichwa carrega frutas para casa na província de Napo, Equador. Tomas Munita, CIFOR
Uma menina Kichwa carrega frutas para casa na província de Napo, Equador. Tomas Munita, CIFOR

É possível preservar a identidade ecológica e cultural desse precioso bioma e, ao mesmo tempo, integrá-lo a um mundo que exige cada vez mais de seus recursos?

Durante três dias, o GLF Amazônia: O Ponto de Inflexão – uma conferência online de apresentações e discussões científicas, políticas e culturais de quase 280 palestrantes – procurou identificar soluções para como esse desafio dicotômico pode ser resolvido. Nos primeiros dois dias, uma série de táticas foi identificada: mapeamento local e via satélite, acesso à tecnologia e Internet, sistemas agroflorestais, inclusão de pequenos produtores em políticas de produção livre de desmatamento, treinamento de bombeiros locais, mais investimento privado e financiamento, e muito mais. (Leia os resumos dos dois primeiros dias aqui e aqui.)

Mas o evento culminou com a apresentação de soluções, ou melhor, da base que deve ser estabelecida para garantir a sobrevivência da maior floresta tropical do mundo: melhor liderança e vontade política em todos os níveis que colocam a vida da Amazônia e seus habitantes indígenas à frente de políticas executáveis.

“Há uma necessidade urgente de os tomadores de decisão em todo o mundo, e particularmente na região, agirem agora para evitar o desmatamento, especialmente em áreas que já estão atingindo pontos de inflexão”, disse Carlos Nobre, copresidente do Painel Científico da ONU para a Amazônia e um dos maiores especialistas no bioma.

Uma vista aérea da Amazônia Brasileira. Neil Palmer, CIAT
Uma vista aérea da Amazônia Brasileira. Neil Palmer, CIAT

“A Amazônia está passando por mudanças irreversíveis para outros estados degradados de vegetação e configurações da paisagem, colocando em risco os serviços essenciais prestados pela Amazônia às populações locais, regionais e do globo.”

Em um breve discurso resumindo o estado do bioma, Nobre, que cunhou o conceito de ‘ponto de inflexão’ da Amazônia décadas atrás, observou as muitas mudanças já ocorrendo: temporadas de seca que são três a quatro semanas mais longas do que na década de 1980, temperaturas médias que são 2 a 3 graus mais altos, diminuição da precipitação, redução acentuada na evapotranspiração e reciclagem da água e, o mais preocupante, áreas degradadas agora emitem mais carbono do que capturam.

Se o bioma Amazônia coletivamente atingir seu ponto de inflexão – isto é, o ponto em que seca e transforma-se em um ecossistema semelhante a uma pastagem – 30% da floresta ainda permanecerá, devido às chuvas que vêm dos Andes, segundo Nobre. No entanto, essa perda de 60 a 70% resultaria na liberação de mais de 250 bilhões de toneladas de carbono, acelerando a mudança climática e uma cascata de outras catástrofes ecológicas ao redor do mundo, incluindo o aumento de doenças infecciosas emergentes, como COVID-19. “A situação parece ser terrível”, ele alertou.

Além de pedir mais liderança, ele ressaltou que os paradigmas de desenvolvimento existentes precisam ser reconfigurados para causar menos danos ambientais, e que o conhecimento indígena e local sobre como usar os sistemas agrícolas, aquáticos e agroflorestais da Amazônia devem sustentar essas mudanças de paradigma.

Globalmente, os povos indígenas recebem menos de 1% de toda a ajuda à mitigação do clima, apesar de serem os guardiões de 80% da biodiversidade florestal remanescente do mundo.

Ruben Lubowski, economista-chefe de recursos naturais do Fundo de Defesa Ambiental (EDF), ecoou a dependência de uma mudança de política bem-sucedida na inclusão de povos indígenas ao falar no lançamento do evento do Green Gigaton Challenge, uma nova iniciativa que visa mobilizar financiamentos para apoiar a redução de um gigaton de emissões anualmente até 2025 através da conservação e restauração florestal.

Entre 2004 e 2012, a produção de commodities agrícolas na Amazônia aumentou, mas a conservação do bioma ainda melhorou, disse ele, provando que o desenvolvimento pode ocorrer com segurança com políticas adequadas. Mas quando mudanças políticas e retrocessos na aplicação da lei e no financiamento começaram a ocorrer, qualquer continuação das reduções de emissões foi associada ao estabelecimento de áreas protegidas e territórios indígenas, que atualmente cobrem cerca de 45% da Amazônia.

Uma mulher indígena no Brasil demonstra os danos causados a seu povo e suas terras em uma marcha em Brasília em 2019. Apib Comunicação
Uma mulher indígena no Brasil demonstra os danos causados a seu povo e suas terras em uma marcha em Brasília em 2019. Apib Comunicação

“Quando falamos de escala, a questão realmente importante é que estamos impulsionando a mudança em um nível sistêmico e holístico”, disse ele. “Grande parte da durabilidade [da conservação] é uma prova do papel dos povos indígenas na proteção de suas terras diante de enormes desafios, especialmente durante o governo Bolsonaro nos últimos anos.”

“A proteção das florestas anda de mãos dadas com políticas, e especialmente, políticas para salvaguardar os direitos de grupos vulneráveis, como comunidades indígenas”, disse Maria Victoria Suarez Davalos, oficial do programa REDD + da ONU para o Meio Ambiente que está coliderando o Green Gigaton Challenge. Esses direitos, disse ela, vão desde à terra e a posse até o direito participativo, financeiro e o mais básico direito à voz.

A legislação está se movendo atualmente na direção oposta, porém, com o roubo de terras e o desmatamento de territórios indígenas em ascensão. Selma Dealdina, diretora-executiva da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), descreveu como projetos de mineração no estado do Pará estão ameaçando 800 famílias de serem expulsas de suas terras – uma ilustração do “estado de guerra” que o governo brasileiro declarou aos povos indígenas. Globalmente, 40% dos defensores ambientais mortos são indígenas.

“O racismo institucional e estrutural exclui os povos indígenas e negros dos processos para que não possamos permanecer em nossos territórios que ocupamos há muito, muito tempo”, disse Dealdina. “Tentamos preservar para que a água não seja poluída, as árvores não sejam derrubadas e a proteção da terra continue.”

“Não se pode ter mineração sem destruir a terra”, disse Manuel Pulgar Vidal, ex-ministro do Meio Ambiente do Peru. “Isso criou feridas graves na Amazônia.”

Mineração ilegal de ouro em larga escala em Madre de Dios, no sul da Amazônia peruana. A floresta aparece em preto para destacar poços de mineração, com seu solo amarelo exposto. Superfície da água em várias cores, do preto quando clara ao azulado / esverdeado quando com sedimentos em suspensão e/ou eutróficos. Oton Barros, INPE
Mineração ilegal de ouro em larga escala em Madre de Dios, no sul da Amazônia peruana. A floresta aparece em preto para destacar poços de mineração, com seu solo amarelo exposto. Superfície da água em várias cores, do preto quando clara ao azulado / esverdeado quando com sedimentos em suspensão e/ou eutróficos. Oton Barros, INPE

No último dia do evento também houve o lançamento de um comunicado intitulado “Proteja a Amazônia! A vida é uma só e está em nossas mãos,” preparada por líderes e organizações indígenas como uma chamada à ação para que os líderes globais abordem a emergência de proteger a Amazônia e suas terras indígenas. O comunicado, que será levado à COP 26, prevê as seguintes oito ações:

  1. Resolver a insegurança jurídica da posse de terra
  2. Adotar Uma Saúde
  3. Realizar uma recuperação justa, equitativa e sustentável da COVID-19
  4. Coordenar a proteção e restauração da Amazônia
  5. Os signatários do Acordo de Paris e da Convenção sobre Diversidade Biológica devem trabalhar juntos em um plano de ação coerente. 
  6. Os líderes corporativos devem receber aconselhamento científico e cumprir as metas ambiciosas de neutralidade do carbono e desmatamento zero 
  7. Os mercados de importação e os consumidores devem garantir que as empresas respeitem os direitos humanos e ambientais 
  8. As organizações da sociedade civil devem se unir pela Amazônia e seus povos 

Os líderes políticos, que falaram no último dia, apelaram repetidamente para a necessidade de novos modelos econômicos – economias circulares, bioeconomias, transições de energia renovável, ecoturismo – a fim de colocar o bioma no caminho da sobrevivência em vez da destruição.

“Todos os governos da Amazônia têm um grande desafio para a transição para a produção e consumo sustentáveis”, disse Luis Hidalgo Okimura, governador da região de Madre de Dios no Peru. “É baseado em um conceito que combina a produção agrícola sustentável e economicamente viável com uma melhor preservação da floresta, para facilitar o desenvolvimento sustentável que melhora a subsistência da população e também a proteção ambiental.”

“A Amazônia exige um modelo que assuma que a floresta tropical será saudável, em pé e forte, e que respeite os direitos de seus povos”, resumiu Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente do Brasil.

Silva classificou as iniciativas necessárias para alcançar tal modelo em três grupos: comando e controle para combater atividades ilegais e a exploração na Amazônia, regulamentações territoriais que protegem a Amazônia do desmatamento e demarcam terras indígenas e ações que apoiam a boa formulação de políticas, como técnicas e agências científicas como o Painel Científico da ONU para a Amazônia coliderado por Carlos Nobre.“Este é o momento de repensar como vamos trabalhar de uma maneira diferente para desenvolver técnicas baseadas no que a natureza nos mostrou”, disse Benki Piyãko, um líder dos povos Asháninka do Peru. “Como indígenas… temos provado que sem a terra não somos nada, sem o conhecimento não somos nada.”

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